Lisboa desenvolvia já nessa altura um programa turístico sem precedentes mas os “turistas exigentes” como dizia Pessoa, tem agora como companhia milhares de pessoas que se deslocam diariamente das periferias para o centro de Lisboa. Embora não sejam estes os viajantes-alvo da campanha publicitária de L94, muitas destas pessoas, de etnias variadas, são recém-chegadas a Lisboa e constituem a nova face da mão-de-obra portuguesa, muita dela africana. Lisboa é já nessa altura uma das cidades europeias com mais residentes africanos, acima da centena de milhares. A grande transformação de Portugal, “[de] o único estado-nação uniétnico da Europa” para um pequeno melting-pot com imigrantes africanos e asiáticos, reflecte-se na vida cultural “não oficial” de Lisboa, incomodamente representada na publicidade de L94” Lisboa não soube usar a sua condição privilegiada de ser uma cidade em que se poderia problematizar o facto de ser um ponto de encontro da Europa multicultural e a África e as Américas, um ponto de encontro complexo e que poderia por isso ser prenúncio de um grande leque de criações futuras. Tal como na Expo 98 não ficou para as gerações futuras experiências de co-produção internacional em que a abertura às culturas da Lusofonia ou de outras georreferencias fosse uma prioridade.
Como artista e observador da L94, senti a necessidade de criar uma organização, suportada pela criatividade musical e pela riqueza da diversidade cultural que faz o DNA de Lisboa, que tornasse visíveis aqueles que apesar de ouvidos e lidos aqui ou ali viviam sobretudo na noite da Lisboa Africana. Noites em que a noite era em pleno dia. Nessas noites as imagens de Lisboa eram misturadas com a marginalização e não reconhecimento das culturas imigrantes como parte integrante da cidade. Mas a festa dos que não podiam pertencer a instituições do Estado ou a outras privadas, ainda hoje são afastados delas, servia os institucionalizados e privilegiados brancos lisboetas até à manhã seguinte. Ao acordar todo aquele deslumbre se diluía nos problemas pessoais e/ou institucionais dos que por lá passavam e nada ficava de significativo. Celebrava-se sem ritual, como numa refeição sem comida, esta não integração apesar do rumo da diversidade cultural para onde o mundo corria a grande velocidade. Os lisboetas em geral não percebiam, ou não queriam, que visitar uma comunidade com uma tradição cultural própria, enquanto colectivo, poderia constituir um dos factores modificadores do impacto da situação junto dos membros de um grupo outsider. Esses encontros celebratórios poderiam servir o propósito de passar uma imagem positiva do imigrante, afastando os supostos motivos de exclusão e criando, deste modo, a possibilidade de renegociação da sua pertença à sociedade lisboeta. Foi por esta indiferença disfarçada de preocupação que se criaram as palavras multicultural ou intercultultural. Mas Lisboa (e Portugal) vivia e vive numa permanente crise de identidade e esse reconhecimento não foi feito nos anos 90 e continua por fazer de forma séria nos nossos dias. Foi neste contexto, apresentado muito resumidamente, que surgiu a Associação Sons da Lusofonia e a Orquestra com o mesmo nome que foi, em 96, o primeiro laboratório regular de experimentação intercultural existente em Portugal. Criou-se um colectivo permanente integrado por artistas profissionais, alguns dos clubes nocturnos da noite africana, por artistas emergentes e por imigrantes trabalhadores que usavam a música tradicional dos seus países como manifestação da sua liberdade e ao mesmo tempo como escape da vida de novos escravos da construção civil.
A Sons da Lusofonia tornou-se na primeira entidade artística com foco nas culturas em presença na cidade de Lisboa a organizar-se no sentido de dar visibilidade a artistas dos espaços da língua portuguesa. Muitos desses artistas eram imigrantes à procura de melhores condições de vida e alguns deles eram provenientes de países em guerra. Eram além de imigrantes, refugiados.
O que muitas vezes os imigrantes e refugiados fazem é mostrar-nos o caminho para resistir a ditadores, fascistas e a oligarcas abdicando de privilégios dos quais nenhum de nós quer abdicar sem muito custo. Muitas vezes, são eles os que com coragem fazem a luta que depois os ocidentais tentam, não sem hipocrisia, capitalizar como vitórias da humanidade quando se derrubam regimes nocivos. Ao mesmo tempo trazem, como outsiders, as suas culturas que, caso houvesse uma verdadeira abertura de espírito, seriam uma bênção para parar a normalidade que se instala com a repetição performativa e os preconceitos pouco mundanos. Quantos de nós conseguimos sequer imaginar, muito menos pôr-se na pele de alguém, perder todas as suas referências quotidianas – físicas, espirituais, mentais, sensitivas, enfim culturais- perder quase tudo? O que fica depois de perdermos quase tudo? Fica a cultura que trazemos todos no corpo e nas mãos como a prenda mais importante da humanidade, a generosidade. Se ao menos soubéssemos receber, se os soubéssemos receber e agradecer por essa dádiva. Portugal, como a Europa, está demasiado velho para ser sustentável repetindo os mesmos erros. É preciso mudar e não há população rejuvenescida. Embora tenhamos uma das melhores políticas de acolhimento as desigualdades tornam quase impossível acolher com dignidade. São muito poucos os que o fazem. À direita sabemos que, conjuntamente com um patronato inculto e uma retórica católica, os imigrantes alimentam a fogueira dos preconceitos e da mesquinhez da extrema-direita. À esquerda os mesmos imigrantes alimentam discursos que esbaram uns nos outros ou na burocracia e na falta de acções concretas para gerar novas cidadanias. Com Jorge Sampaio ganhámos alguma esperança em termos civilizacionais, mas não se consegue lidar com as polaridades politicas e pouco se tem feito para desinstitucionalizar a diversidade cultural, a integração de migrantes e a luta contra as desigualdades. Vivemos numa situação em que as Instituições intermédias, que não sofrem de partidarite e deveriam garantir modelos de funcionamento democrático, praticamente não existem e por isso não inscrevem grandes gestos na mudança de atitudes. As que sofrem de partidarite são imensas e esclerosam, com uma burocratização do mundo difícil de imaginar por Kafka, as lutas contra as desigualdades e contra a tirania do fascismo financeiro. Lisboa 94 e Expo 98 foram vítimas disso mesmo e deixaram simbologias avulsas e obra feita (ao menos isso) para a vista, não para a construção sustentada de comunidades mais sãs e mais livres e, principalmente, com autonomia.
É o nosso dever continuar a apoiar os corajosos migrantes que num momento de dificuldade nos pedem ajuda. Em 2022 a Sons da Lusofonia continua a colaborar na integração de imigrantes, mas desta vez são do Afeganistão ou da Ucrânia. A Sons da Lusofonia, através do programa D´Improviso está a trabalhar com a ANIM, a Orquestra Afegã que, entretanto, e para nosso privilégio se tornou lisboeta. Estamos a ajudar com música e a encontrar casa para alguns elementos. Somos felizmente algumas, ainda poucas, organizações em conexão a trabalhar para o mesmo fim.
Mais cedo do que tarde será nosso dever também receber os Ucranianos como agradecimento por aquilo que com coragem e bravura fazem por nós, defenderem-nos de oligarcas russos com tendências fascistas que ameaçam a democracia.
É altura de voltar a lembrar que a luta pela liberdade não tem fim e que mesmo com os paradoxos que existem na construção da humanidade a coisa mais importante, e que constrói nos nossos corações a solidariedade, é a generosidade. Podemos compreender que aqueles que vivem em míseras condições, como muitos artistas portugueses, não têm como ajudar. Mas podemos perguntar-nos se o facto de viverem em tamanha desigualdade não advém do facto de não estarem disponíveis para ajudar outros à sua volta.
Que saibamos dar e receber e que saibamos lutar contra as desigualdades nos nossos sistemas sociais e pessoais. É isso que fazemos na ASL desde há 26 anos, com avanços e recuos, acreditando que mais tarde ou mais cedo a nossa visão será uma inspiração para outros. Foi esta consciência da importância do outro que nos levou a criar o Lisboa Mistura ou a Festa do Jazz, entre outros projectos socio-culturais de intervenção, e a abrir o nosso foco além da Lusofonia e além de nós, que somos bojadores de nós mesmos.
Bem-vindos todos os que procuram a paz e a liberdade através da abertura de espírito e da integração das diferentes culturas nos mapas espirituais de Lisboa e do Mundo.
Carlos Martins,
Presidente da Associação Sons da Lusofonia,
Coordenador geral da Festa do Jazz e do Lisboa Mistura
www.sonsdalusofonia.com